As Divindades Regentes da Chuva

As Divindades Regentes Da Chuva

Por: Mirella Faur

A chuva é um símbolo universal de fecundidade e fertilidade, considerada doadora e sustentadora da vida animal, vegetal e humana, um verdadeiro fluido divino criador da vida. Na maioria das antigas culturas e tradições nativas o princípio feminino era representado pela água, regida pela Lua. São as “águas da vida” que cercam o feto e é o oceano primordial que representa a fonte da vida. Rios, correntes, fontes, lagos, mares são associados com a “Senhora das águas que correm”, revelando a natureza fluida e mutável da Deusa. Quando reverenciada como uma força benéfica, a água e a chuva eram associadas com um sistema complexo de rituais e magias, para controlar e direcionar sua energia, principalmente nas regiões áridas. Nas comunidades primitivas, a pessoa mais importante era o xamã encarregado dos rituais de chuva. Em todo o mundo antigo, entre etnias diversas e radicadas em lugares diferentes, eram constantes os rituais dedicados à chuva para que esta caísse sobre a terra, a fecundasse e a tornasse fértil.

Filha das nuvens e das tempestades, a chuva era também relacionada com o fogo, além da água. Na Índia, Indra é a manifestação divina do raio que dá origem à chuva e torna férteis os campos, as mulheres e os animais. As mulheres grávidas na Índia são comparadas à chuva, como nascentes auspiciosas de toda a riqueza e abundância. No Islam, são os anjos enviados por Deus que transportam as gotas de chuva, uma ideia que também existe na Índia, onde os seres sutis são transportados para a terra em gotas de chuva. Na China, a chuva é manifestação do céu que é um princípio ativo, masculino e fecundante. No Oriente, tanto na China como na Índia, considera-se que a chuva é de origem lunar e de natureza Yin, enquanto o orvalho, também lunar, é de natureza Yang. Na Grécia, a lenda da princesa de Argos Danae conta que esta, tendo sido encerrada pelo pai num local subterrâneo para evitar que tivesse filhos, foi fecundada por Zeus, que entrou no recinto transformado numa chuva de ouro que pingou de uma fenda no teto.

A conotação sexual da chuva como sémen dos deuses é também encontrada entre os índios da América Central, que consideram a chuva como “a semente do deus da trovoada”. Estes povos utilizam a mesma palavra para designar a chuva, a água e a vegetação. Entre os Astecas, o deus da chuva era também o deus dos raios e dos trovões. Os Incas acreditavam que a chuva era retirada da Via Láctea, considerada um grande rio no céu, pelo deus das trovoadas. Para muitas civilizações centradas na agricultura, a chuva é também sangue, o que justifica os muitos rituais de sacrifício de animais e mesmo de seres humanos (crianças e mulheres) que têm como objetivo a fecundação da Terra.

Para quase todos os nossos antepassados, eram os deuses que controlavam a quantidade de chuva que tínhamos, muita chuva (inundações) ou pouca chuva (seca) poderiam provocar a morte. O mais interessante era que as lágrimas eram frequentemente associadas aos deuses da chuva. Talvez isso decorreu de uma tendência das tribos ancestrais sacrificarem crianças para os deuses da chuva. Na Bolívia, em uma área chamada Tiahuanaco, existe um antigo monumento chamado “Portal do Sol”. Sobre o arco fica o Deus do céu, de cuja cabeça saem os raios do Sol. Ele carrega na mão um atirador de flechas, do qual lança raios e de seus olhos correm lágrimas que representam a chuva. Alguns pesquisadores especulam que o nome moderno Tiwanaku é relacionado ao termo aimará taypiqala, que significa “pedra no meio”, em alusão à antiga crença de que ficaria no centro do mundo. Entretanto, o nome pelo qual Tiwanaku era conhecido pelos seus habitantes se perdeu, uma vez que esse povo não deixou linguagem escrita. O mais antigo testemunho está no “Portal do Sol”, erguido em honra ao deus solar Viracocha, nome que significa “Aquele da espuma do mar” (porque, segundo as antigas lendas, o referido deus teria vindo do mar, sobre as ondas).

“Lágrimas do céu” é um tema encontrado também no sudeste dos Estados Unidos. Às vezes é chamado de “culto do Sol” e seu conjunto de emblemas, rituais e símbolos religiosos está espalhado de Flórida para Oklahoma e Wisconsin. Os emblemas incluem conchas gravadas, esculturas em pedra e em argila, jarros de cerâmica e outros itens que são decorados com rostos de cujos olhos escorrem lágrimas.

A chuva, combinada com trovões, inspirou antigos mitos e histórias. Muitas vezes, estes dois eventos foram usados como elementos para punir os “ímpios de coração”. Havia muitas maneiras de provocar a ira dos deuses, como mentira, incesto, roubo, maus-tratos dos animais, desperdício de alimentos ou o não cumprimento de um juramento. Seca, fome e destruição de lavouras eram as punições favoritas da vingança dos deuses. No Antigo Testamento, esta punição foi realizada em grande escala, Deus abriu as portas do céu para que chovesse sobre os ímpios por quarenta dias e quarenta noites.

No mito mexicano da deusa Chalchihuitlicue, relata-se que “A Senhora da “saia de jade” foi responsável pelo Grande Dilúvio, que destruiu o mundo na última era. Vendo o desequilíbrio humano, ela decidiu salvar alguns escolhidos e construiu uma ponte (para que eles pudessem passar) do quarto mundo ao quinto. Depois enviou chuvas torrenciais para afogar todos que tinham cometido atos de maldade e violência contra seus semelhantes ou os seres da natureza. Os povos que a honravam faziam procissões para seus templos pedindo chuvas suficientes para fertilizar a terra, mas sem inundá-la. Uma reminiscência das antigas celebrações das deusas astecas da chuva foi preservada no México na comemoração da Virgem de Zapopan. Na Guatemala, a “cerimônia da chuva” era celebrada com danças de mulheres segurando moringas cheias de água, batendo tambores e sacudindo chocalhos, enquanto invocavam as chuvas purificadoras e fertilizadoras. Em uma antiga gruta da cultura olmeca perto de Cuernavaca, encontra-se esculpida na rocha uma representação da deusa da chuva, regente da fertilidade, a própria gruta tendo o formato de uma serpente. Os índios Pueblo realizam até hoje cerimônias para invocar o “Povo das Nuvens” e atrair a chuva, enquanto os Hopis fazem elaborados desenhos com areias coloridas representando nuvens e danças alegres que festejavam a chuva. Os dançarinos apaches se vestem até hoje com trajes que imitam os animais sagrados como salamandra, sapo, tartaruga, peixe e entoam canções e orações para propiciar a chuva. Os índios Chaco acreditam que a chuva é um espirito que anda montado no cavalo, enquanto outras tribos norte-americanas acreditam que ao jogar uma certa espécie de aranha na água, ou molhar a cauda do búfalo e salpicar água na terra, este fato irá atrair a chuva. Os Aimarás ainda seguem um ritual especial quando a seca é prolongada. O xamã da tribo vai até o lago Titicaca e enche várias vasilhas com água, sapos e plantas aquáticas, deixando oferendas para os espíritos do lugar de onde os tirou. Homens em balsas o acompanham tocando flautas e tambores e orando para os espíritos das montanhas. Depois, uma procissão de homens e mulheres conduzida pelo xamã sobe a montanha Ampatu e deixa as vasilhas com água e sapos em dois altares em pleno sol, orando para que o Pai e a Mãe da Montanha enviassem a chuva. Com o calor solar, a água evapora e os sapos gritam em desespero, lamento que compadece os espíritos da montanha e com pena dos sapos torrando, eles enviam a chuva refrescante.

No Japão no primeiro dia do Festival dos Mortos, milhares de pequenos barcos são preenchidos com comidas e mensagens para os parentes falecidos e os ancestrais. Pede-se aos espíritos que entrem nos barcos que são soltos na água, passando sob um símbolo xintoísta em forma de arco, representando a Grande Mãe, o Portal para entrar e sair da vida, o retorno para a Fonte divina, o “Santuário das almas errantes”. Na China homenageava-se nas fontes d’água, na época das chuvas e inundações, a deusa Xiumu Niangniang, a “Mãe das águas”, pedindo-lhe que as suas dádivas viessem na medida certa. Também na província de Hong Kong comemorava-se a deusa d’água Tien Hou, a “Rainha do Céu”, Regente do oceano e da estrela do Norte, que protegia os marinheiros e pescadores, consultando os ventos e flutuando no meio das nuvens para descobrir e salvar aqueles que corriam perigo. Sua irmã Chuan Hou, a “Deusa da alvorada” regia os rios, a pesca, os animais aquáticos e as viagens marítimas. Os hindus celebravam Ranu Mbai, a Regente da chuva, da fertilidade e da primavera, quando as mulheres estéreis a reverenciavam levando vasilhas com água de chuva para as suas estátuas, molhando-as e pedindo que fertilizasse e abençoasse seus ventres com o dom de gerar a vida. Na Austrália, os aborígenes honravam Wonambi, a “Deusa da chuva e fertilidade”, vista como uma serpente guardiã do arco-íris, enquanto na Finlândia, Rana Neida era louvada como a protetora das renas prenhes e propiciadora da sobrevivência das tribos. Na África do Sul comemorava-se o “Dia da chuva sagrada” celebrando a deusa Mbaba Mwana Waresa, Guardiã da chuva e do arco-íris. Mokosh era uma antiga deusa eslava regente da terra e da água, cujo culto sobreviveu até o século XVI na Sérvia; ela reinava sobre as águas do céu e da terra, a umidade, fertilidade, os animais aquáticos e a pesca. Era simbolizada por pedras com formato de seios e acreditava-se que ao sacudi-las, o leite delas se manifestava como chuva. Na época de seca, as pessoas iam em peregrinação para os rochedos a ela consagrados, pedindo saúde, sorte e prosperidade. No folclore russo seu nome sobreviveu como Mokushka, espíritos femininos que sobrevoavam as casas, protegendo ou assombrando as pessoas e tecendo durante a noite em teares invisíveis.

Na antiga Grécia e Roma os regentes da chuva eram Zeus ou Júpiter, cujos sacerdotes sacudiam galhos de carvalho – sua árvore sagrada – para atrair a chuva e jogavam pequenas imagens dos deuses para pedir que trouxessem a chuva. Nos países anglo-saxões, os druidas lançavam jatos de água sobre moças nuas ou sobre bonecas de pano vestidas com folhas, prática ainda existente em alguns lugares remotos da Europa. Havia procissões conduzidas pelos druidas para certas fontes sagradas ou locais mágicos, onde eles batiam na superfície da água ou jogavam água sobre pedras especiais. A igreja cristã apoderou-se destas tradições, os padres substituíram os druidas e continuaram as procissões levando imagens de santos. Mesmo cristianizadas, com o passar do tempo, estas práticas foram consideradas pagãs e proibidas. Na Rússia celebravam-se as Russalkas, espíritos femininos da água, cuja dança noturna proporcionava o crescimento e a maturação das plantas. Elas se apresentavam como lindas moças vestidas com roupagens de folhas verdes e serpentes nos cabelos, que traziam as chuvas para o campo. No final do verão elas se escondiam no fundo dos rios onde permaneciam até a primavera seguinte e recebiam oferendas de pão e sal por se acreditar que eram espíritos de virgens afogadas. Com a cristianização, as Russalkas foram sincretizadas com a Virgem Maria resultando assim a figura de Mari-Russalka, protetora das águas e dos salgueiros. Na Romênia, nos períodos de seca, as moças das aldeias se cobriam com folhas e galhos verdes e dançavam nas ruas pedindo chuva, enquanto a multidão jogava sobre elas baldes com água e recitava orações para as Paparudas, os espíritos das águas.

Na Índia monges budistas atraem a chuva vertendo água em pequenos orifícios feitos no chão dos templos; as mulheres amarram um sapo a uma peneira giratória e cantam pedindo chuva, despejando água sobre o sapo. A crença no poder da serpente trazer a chuva é revelada pelos dois grandes festivais na estação chuvosa, quando imagens de serpentes são banhadas e orações de gratidão entoadas. Para os antigos hebreus, a chuva era a benção divina como retribuição pela obediência humana às leis de Deus. No Gênesis menciona-se a “separação das águas”, o reservatório da chuva sendo o tesouro divino cujas chaves eram guardadas por Deus. As secas eram vistas como punição pelos pecados da volúpia, cobiça, avareza, maldade, mentiras, roubos e pelas práticas pagãs.

Vários animais são vistos como guardiões ou totens das divindades da chuva como sapos, serpentes e répteis. Em certos lugares, determinadas pedras eram honradas como intermediárias para pedir a chuva ao serem imploradas, molhadas ou submersas. Se a chuva fosse forte demais, elas eram colocadas perto do fogo para secarem. O comportamento de diversos animais podia indicar a chuva: gritos de pássaros, procissão de formigas, voo baixo de corvos, gansos, andorinhas, vagalumes, enquanto o agravamento de certas dores ou doenças humanas também servia como alertas.

No período neolítico a Deusa era venerada como a “Fonte de água que sustentava a vida” e que caia do céu em forma de chuva ou brotava da terra como fonte, rio ou lago. Asim como a constelação da Via Láctea representava a energia nutridora fluindo dos seios da Mãe Celeste, a Mãe Terra era cercada pela água dos mares, que, ao evaporar e cair como chuva a fertilizava e sustentava a vida de todos os seres. A água era o poder gerador, fertilizador e nutridor da Grande Mãe, que ela oferecia ou guardava. Vasilhas que continham água ou leite simbolizavam a própria Deusa, como comprovam as estatuetas das deusas da Mesopotâmia segurando o vaso da vida. O hieróglifo da deusa celeste egípcia Nut era um jarro. Inúmeros vasos moldados com seios e decorados com linhas paralelas, ondulantes, em ziguezague, espirais ou semelhantes às letras V e M (que eram os símbolos da água), encontrados na Creta e Grécia, personificam as deusas celestes, cujo leite nutridor caia dos seus seios em forma de chuva. Os jarros representavam o ventre da Deusa, de onde fluía a água doadora da vida como leite ou chuva.

O pássaro era um animal consagrado à Deusa na sua representação como “Regente do abismo profundo das águas cósmicas”, materializadas como mares, rios, fontes, lagos. Tanto os pássaros que sobrevoavam a terra, quanto os que mergulhavam na água, eram elos entre as duas dimensões que cercam o mundo humano e unem as “águas de cima e as de baixo”. A Deusa Pássaro, antiga representação da “Mãe doadora da vida” é uma imagem composta de mulher e pássaro, com corpo ovoide e pescoço comprido, cujas estatuetas existiam desde o período neolítico e o seu culto durou entre os séculos 13-5 a.C. na maior parte das civilizações, principalmente no Sul da Europa e Ásia. Nestas imagens a Deusa aparecia com formas de cisne, garça, mergulhão, pato, ganso, coruja, pomba ou como vasos com imagens de pássaros ou mulheres com máscaras de aves. Leite, água, chuva e orvalho eram atributos femininos e lunares, fertilizadores e nutridores. Na antiga Suméria, o céu era a própria Deusa, as nuvens carregadas de chuva sendo seus seios plenos de vida. Inanna era reverenciada como Rainha do céu e Regente da chuva, que, ao cair sobre a terra, fazia as sementes germinarem. Um lindo verso de um hino dedicado a Ela descreve assim as dádivas de Inanna: “Eu piso sobre as nuvens e a chuva cai, eu piso sobre a terra e as sementes se abrem e florescem”

Para muitos de nós, a chuva tornou-se um empecilho, as crianças não podem brincar lá fora, temos de levar guarda-chuva e às vezes brincamos dizendo que para fazer chover, basta lavar o carro. Para os agricultores, a seca pode significar sérias e reais dificuldades, não apenas financeiras, mas da própria sobrevivência, enquanto as inundações destroem lavouras e moradias. A maioria de nós, quando longe dos problemas e dos lugares atingidos, sente as consequências da falta ou excesso de chuva pelo noticiário da noite, ou no supermercado, pela carência de produtos ou aumento de preço dos legumes ou frutas. Nossos antepassados tinham outra visão e os seres e eventos da Mãe Natureza eram sagrados. Por isso, as tradições ancestrais devem ser lembradas e honradas, e nós como seus herdeiros, devemos ensinar aos jovens e crianças serem mais compreensivos e sensíveis aos mitos e lendas relacionadas com “as lágrimas do céu”.


Fonte: O Mundo de Gaya
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